sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O MÁGICO DE LA ZONE – DOROTHY GARLAND


Para Michel Guerrero.

Um ritual muito estranho, estranhíssimo. Alguns ficaram confusos com o que foi apresentado naquela noite no Teatro Amazonas. Casa lotada. Ranger de cadeiras sendo arrastadas pelas frisas dos pavimentos. Dorothy Garland estava começando. Elenco numeroso, contei 24 intérpretes, nem sei se a conta está certa. A cena inicial acontece, em alguns minutos todos os índios estão mortos, assassinados de forma violenta, à queima-roupa. Restaram bem poucos, alguns sobreviveram e estavam assistindo Dorothy Garland, mais um texto da saga de La Zone, de autoria de Sérgio Cardoso, o dramaturgo misto de cinéfilo, que coloca muito de sua paixão cinematográfica em sua cena. Na direção, Chico Cardoso, que consegue a proeza de inserir as visões de Sérgio num palco repleto de gente, atores e atrizes sinceros em suas limitações, mas que carregam uma gana de atuar, de jogar com a emoção. Canções indígenas que se misturam com Over the Rainbow, tribo e tela, Judy Garland e Dona Doró, personagens que vivem tão perto e tão longe, parafraseando outro filme.

Filmes são a base da carpitaria de escriba dramatúrgico, deste Sérgio Cardoso que a cada peça de Teatro revive La Zone e suas mulheres, as guerreiras urbanas e/ou indígenas que perderam a identidade nesta cidade que vive de restos do que foi, que tenta ser algo e ter uma cara, mas que não tem mais um rosto autêntico. A encenação de Chico Cardoso tenta conferir veracidade para a situação, e consegue isso muitas das vezes, talvez não de forma integral, pois se percebe que algumas cenas ainda precisariam de certo tratamento, de um apuro.

Um elenco numeroso, muito heterogêneo, talvez tenha sido o grande problema que Chico, honestamente, tentou resolver, e isso foi uma tarefa difícil, tenho certeza. A ajuda veio da dança, que fez os encadeamentos importantes para a trama tragicômica que é a colagem do texto. Texto que cruza várias influencias e cronologias. Weldson Rodrigues fez este papel de coreógrafo exemplarmente e você percebe que o elenco deu o máximo de si para que mantivesse a ideia de união dos movimentos, e isso é ponto fundamental para entender o porquê deste espetáculo ter tido a anuência do público naquela noite teatral. Aqui ressalto alguns trabalhos interpretativos, seja de Victor kaleb e seu Reverendo JJ Tompson, Juliana Mesquita com sua exagerada proposital Ginger Judy ou Diego Bauer com o afetado igualmente exagerado Billy Bob.

O exagero foi a marca deste espetáculo, uma exacerbação de sentimentos, uma matança desenfreada, um pastelão de cine-teatro, uma situação de horror e de cena politicamente incorreta, mas que serviram para demarcar este território crítico, de fazer a tônica inversa de um
Teatro que não se propõe a discutir antropologias, aqui o que interessa é divertir e fazer refletir sem um paradigma acadêmico, não é um Teatro de tese, é um Teatro de catarse. Dorothy Garland, agora Dona Doró, com suas rezas, santificações e curandeirismos tropicais é o fio condutor desta trama engraçada, e não poderia ser de outra forma. Desde o começo, quando os índios entoam o “sumuéoverreinbounis”, percebemos que o riso é a tônica, o exagero e a
bufonaria, a transgressão é o fato máximo desta montagem.

Michel Guerrero está em seu auge interpretativo, consertando cenas e imprimindo uma força de interpretação para sua Dona Doró, é tão bom vê-lo em cena integralmente, sua máscara que cola em nossa mente e nos leva ao riso, suas falas que combinam algo de grave com um cômico contido, suas lições de moral às avessas, sua elegância em todos os aparatos que necessita sua personagem e que mesmo no erro funcionou ali, numa cena onde o público reconheceu de imediato que estava diante de um grande intérprete, aplaudindo freneticamente a cena em que a tampa do telefone despenca e num átimo de ação Miche/Dona Doró chuta para a lateral o artefato. Cena que vale ouro, o tempo preciso que o ator fez torna-se parte da ação, sensibilidade e antevisão de cena, e isso não é todo mundo que consegue. Michel Guerrero, definitivamente, fez uma das personagens de maior carisma de seu vasto repertório. Essa Dorothy Garland que se apaixona pelo passado que não tem mais fim em sua memória, que transita elegantemente em torno do caos de La Zone, a real cidade escondida dentro da ficção. O entendimento que tenho deste trabalho talvez seja o do público comum: é um trabalho honesto em seus propósitos, em sua envergadura estética simplificada, em seu cenário amplo de sacos de ervas, em seu baú que ganha vida e torna-se um personagem-objeto que cria situações escandalosas e sexuais, de êxtase e de roubalheiras desenfreadas, e aqui Chico Cardoso foi mais uma vez feliz em tornar este baú o manancial de Pandora, com suas intermináveis multidões de desesperados que esperam a abertura de sua comporta, de sua tampa atroz.

A cena final, no World Trade Center, e o número coreográfico final, dizem muito desta peça, de sua energia contagiante, da audácia de Chico Cardoso em apimentar sua cena com imagens libertárias, fora de cartilhas partidárias ou de panfletagens que hoje cansam em relação às causas indígenas e dos caboclos ribeirinhos. Chico coloca os seres humanos em sua posição de motais, reles mortais, fadados ao erro, ao tumulto. Não há redentores, heróis indígenas, caboclos sofredores, este óbvio ululante não tem sentido aqui, num texto que cospe na cara de todos, que se esparrama de situações “pantagruélicas”, onde o que interessa é a diversão e a reflexão, e isso sem equilíbrios, tudo ao mesmo tempo. Não é, em absoluto, um Teatro cerebral. Erros existem em Dorothy Garland, mas os 24 ou 25 atores e atrizes fizeram o melhor, e a memorável atuação de Michel Guerrero com sua Dorothy atestam e comprovam, junto com os 600 espectadores: essa noite foi muito divertida. Essa noite o Teatro me fez feliz.

Jorge Bandeira

Manaus, 31 de outubro de 2011.

CENAS DE DOROTHY GARLAND - 8° FTA



O Origem apresentou o espetáculo "Dorothy Garland", de Sérgio Cardoso e direção de Chico Cardoso no 8° Festival de Teatro da Amazônia. O espetáculo foi premiado em duas categorias, melhor ator para Michel Guerrero e melhor atriz coadjuvante para Juliana Mesquita. "Dorothy" vai entrar em temporada a partir desta segunda quinzena de novembro em espaços culturais de Manaus.